20 de jun. de 2010

Estatuto Racial e a afirmação da identidade negra

No dia 16 de Junho (Quarta-Feira), o Senado Federal aprovou o Estatuto da Igualdade Racial, um documento cujo objetivo é criar, do ponto de vista legal, oportunidades para as chamadas minorias étnicas. Para haver igualdade, é importante entender também o conceito de diversidade, em todos os níveis: religioso, cultural, político e econômico. Não é o que se vê no Estatuto aprovado pelo Senado.

A Constituição reza que "todos são iguais diante da lei", mas o sistema econômico nos mostra que a lei é para quem pode pagar por ela. Infelizmente, nem todas as pessoas que precisam ser beneficiadas pela lei, podem. Vale lembrar que o tal Estatuto foi idealizado ainda em 1999 e ficou engavetado por 10 anos. De criação do senador Paulo Paim (PT-RS), o projeto sofreu mudanças que o deixou irreconhecível. A plástica feita no "Frankestein" - nas palavras do belo editorial da AfroPress - ficou por conta do senador Demóstenes Torres (DEM-GO). 

Desvirtuando o Estatuto 

O senador é da bancada ruralista, que além de reunir grandes produtores rurais, tem em suas fileiras políticos acusados de pactuarem com o trabalho escravo. Boa parte dos trabalhadores ainda submetidos a esse regime - em pleno século XXI - são negros. É vergonhoso imaginar que um servidor público, concursado do Ministério Público de Goiás como o senador Demóstenes, tenha tomado essa atitude preconceituosa e excludente em propôr tal projeto. No entanto, é compreensível seu posicionamento, levando em consideração sua postura ideológica, em defesa dos interesses de grandes empresários e corporações do agronegócio.

A primeira falha do Estatuto, logo de cara, é não reconhecer a diversidade étnica brasileira e resumir boa parte de nossa história e cultura em "todos são iguais diante da lei". A segunda falha grave do Estatuto é excluir de seu texto as políticas afirmativas implementadas pelo Governo Federal, com o ojetivo de diminuir a desigualdade de oportunidades, sobretudo no mercado de trabalho e no ensino superior. As chamadas cotas raciais, na visão de políticos  e formadores de opinião na grande imprensa, são preconceituosas e excludentes, pois daria - na visão deles - exclusividade para os negros e índios ingressarem nas universidade, deixando os que "realmente precisam" de fora.

Em Março deste ano, o próprio senador democrata disse que o problema não é racial, mas sim estrutural, da pobreza. Além disso, ele declara que isso privilegiaria negros ricos. "Ao estabelecermos cotas raciais, estabelecemos que os negros ricos podem entrar por meio das cotas, o que é uma discriminação grave". Quando se fala em igualdade racial, parte-se do pressuposto de que é necessário criar mecanismos, inclusive legais, de promoção de grupos étnicos minoritários. E isso independe da condição socioecônomica. Talvez o senador desconheça esse princípio básico. Segundo o professor José Jorge de Carvalho, do Departamento de Antropologia da Universidade de Brasília (UnB), em 2004, 97%  dos alunos de universidades públicas brasileiras eram brancos, 2% negros e 1% de amarelos. São dados que se chocam com outra realidade: a de que o Brasil tem 45% da população declaramente negra e, paradoxalmente, se encontra nos patamares sociais mais baixos.

Além do futebol e da música

A problemática racial precisa sair do campo simbólico e atingir o campo prático, e ganhar autonomia. Os partidos de direita trabalham com a idéia de democracia racial, isto é, a de que não há racismo no Brasil e que os negros, por aqui, "sabem o seu lugar". A idéia é abraçada inclusive por políticos, intelectuais e partidos de esquerda. A questão sempre esteve lá, mas de um modo ou de outro, sempre tamparam os olhos. Fica para segundo plano.

Tudo isso tem dificultado os próprios negros e a forma como se vêem. É lamentável andar pelas ruas e ouvir as pessoas chamando uns de negros, outros de moreno, e alguns de mulato/a (urgh!); estabelecendo graus de mais ou menos cor, etc. Prejudica o relacionamento entre homens e mulheres de cor negra. O preconceito em relação aos negros não é por sua origem, e sim, por seus traços. Nisso podemos incluir a boca, o nariz, os olhos, o cabelo, além da cor da pele. Basta perguntar aos policiais como eles abordam os negros na rua. Isso quando abordam - às vezes matam antes de perguntar.

Na avaliação do senador democrata, um artista como Dudu Nobre, que veio de berço nobre, não poderia entrar na universidade, nem ser beneficiado pelo sistema de cotas, por ser um negro rico. Sim, ele é rico, mas ascendeu socialmente pelo espaço que a sociedade branca relegou aos negros: futebol ou música. Ele subiu através da segunda alternativa. É indubitável sua capacidade artística, mas somos bons só na e para a música? Claro que não!  E somos bons só no futebol e para o futebol também? Também não!

Os negros estão mostrando que sua capacidade vai além desses dois âmbitos. Para continuar na questão das cotas em universidades - suprimido do Estatuto - os alunos cotistas têm menor índice de evasão em relação aos não-cotistas, segundo o MEC. Enquanto estes têm evasão de 4%, aqueles têm índices de 13%. Em 2008, na própria UnB, enquanto 1,73% dos alunos cotistas trancavam matérias nos cursos, 1,76% dos não-cotistas tomavam a mesma providência. Isso sem contar nas notas: 6,5 dos cotistas e 6,3 de não cotistas.

Isso mostra a efiência da política cotas raciais. Além disso, com a criação da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, no governo do presidente Lula, mostra que o Estado reconhece as falhas e tenta, através da SEPPIR, corrigí-las e oferecer políticas públicas que atendam a população negra no Brasil.

Fatia grande? Nós queremos!

Outro ponto que foi subtraído do Estatuto aprovado no Senado é a concessão de cotas em partidos políticos e empresas. Ora, se não há negros, não há cotas; se não há cotas, para quê abrir espaço para eles no mercado de trabalho? Essa é a visão do senador democrata, quando aprovou o "Frankstein" (me aproprio do termo usado pela AfroPress). Visão simplista, que desconsidera toda nossa complexidade cultural.

Em um texto que publiquei aqui mesmo, no blog, já destacava a discrepância entre o sonho de uma democracia racial e a realidade dos negros. Os tais "negros ricos" que o senador democrata cita em sua declaração são praticamente invisíveis. Reproduzo abaixo um trecho do texto:

Já no topo da pirâmide, os números não são animadores. Dados do Instituto Ethos e do Ibope de 2006 mostram que somente 3,4% ocupam cargos de Presidência ou Diretoria dentro de grandes empresas. Nos cargos de Gerência o número aumenta para 9% e o percentual aumenta a medida que os cargos diminuem na hierarquia empresarial. São 13,5% ocupando cargos de Supervisão e 26,4% nos demais cargos, de natureza operacional. 

Os dados mostram que há mais negros nos chamados trabalhos braçais e menos nos intelectuais. Isso sem falar nos "inempregáveis", termo usado por Fernando Henrique Cardoso para justificar o aumento do desemprego durante sua gestão. Não faz o menor sentido a sociedade e o Estado se esquivarem de um problema tão grave como esse. Também não é possível que o presidente Lula, com mais de 80% de aprovação em seu governo, manche sua gestão sancionando essa lei esdrúxula, excludente e preconceituosa.

Estamos vivendo uma segunda Lei Áurea. Na primeira, aprovada em 13 de Maio de 1888, os negros estavam "livres" da escravidão formal, mas foram jogados ao seu próprio destino. Sem emprego nas cidades, e sem reforma agrária, no campo, os negros foram compondo bolsões de miséria, longe dos grandes centros urbanos, ou em volta deles, que são os que hoje se chama de favela.


Que o projeto seja vetado pelo Presidente Lula e que seja debatido amplamente pela sociedade. Os principais interessados - negros e demais minorias étnicas - precisam entrar ativamente no debate, ou ficaremos no lugar de "coadjuvantes", que é o sonho da elite branca, que sonha com um Brasil "europeu", sem índios, cafusos, caboclos e negros.

Eduardo Pessoa

Nenhum comentário:

Postar um comentário